Os Impactos da Desjudicialização da Execução Civil

A litigiosidade no Brasil

O Brasil é um caso grave de hiperlitigiosidade. Com mais de 75 milhões de casos pendentes e 25 milhões de casos novos no Poder Judiciário (CNJ, 2021, p. 105-106), o contencioso brasileiro é um dos maiores do mundo. Quando analisamos o perfil dos processos envolvidos nesse congestionamento, a mais relevante descoberta é a existência de uma grande quantidade de ações de execução. 

De acordo com o Relatório Justiça em Números de 2021, as ações de execução fiscais e cíveis representam mais da metade (52% ou 39 milhões) de todos os 75 milhões de processos que tramitam na Justiça. Dessas 39 milhões de execuções pendentes, quase 11 milhões são execuções cíveis. Assim, ao invés de empregar seus recursos no que deveria ser a sua atividade essencial, julgar o mérito de ações de conhecimento, o Poder Judiciário gasta uma parte substancial de seus recursos atuando como um cobrador.

Como juízes e serventias não foram concebidos e treinados para essas atividades, as execuções são ineficazes e mostram enorme dificuldade em progredir. Os “dados mostram que, apesar de ingressarem no Poder Judiciário quase duas vezes mais casos em conhecimento do que em execução, no acervo a situação é inversa: a execução é 32,8% maior. Os casos pendentes na fase de execução apresentaram uma clara tendência de crescimento do estoque entre os anos de 2009 e 2017 que permanece quase que estável até 2019.” (CNJ, 2021, p. 169).

Para visualizar a comparação, a Figura 1 abaixo mostra a série histórica dos casos pendentes na fase de conhecimento e execução no Judiciário. É possível observar uma clara tendência de alta no volume de execuções pendentes até 2020, quando este volume foi reduzido em razão da pandemia da COVID-19 (DALEFFI, TRECENTI E NUNES, 2020). 

 

Série histórica dos casos pendentes nas fases de conhecimento e execução.
Fonte: Conselho Nacional de Justiça, 2021.

A queda observada ao final não significa que o acervo das execuções de títulos tenha diminuído naquele ano. Em 2020 entraram cerca de 3,77 milhões de novas execuções não fiscais e não penais no Poder Judiciário, ao passo que o número de casos semelhantes baixados foi de aproximadamente 3,42 milhões. Ou seja, em 2020, mesmo com a redução resultante da pandemia, o estoque de execuções civis não fiscais e não penais aumentou em cerca de 350 mil casos (CNJ, 2021).

 

O PL 6.204/19 e a proposta de desjudicialização

Uma das estratégias mais efetivas para tornar a execução mais efetiva, aumentando a taxa de recuperabilidade de créditos e reduzindo o tempo de duração,  é deslocar os processos de execução cível para fora da estrutura do Poder Judiciário, deixando-os ao encargo de agentes de execução especializados.

A chamada desjudicialização da execução transfere as tarefas de natureza preponderantemente administrativa, como a citação e intimação do devedor, a localização, a avaliação e a venda de bens para agentes de execução privados, mantendo com o Poder Judiciário apenas as funções jurisdicionais e de fiscalização.

Com resultado, a carga de trabalho sobre o Poder Judiciário seria muito reduzida, permitindo que sua estrutura de recursos humanos e materiais fosse redimensionada e empregada na sua atividade típica, que é julgar o mérito das ações. Com a desjudicialização, não apenas as execuções se tornariam mais efetivas, mas também a prestação jurisdicional nas demais ações também tende a se tornar mais célere. 

Além de propor a desjudicialização, o PL 6.204/19 trata também de uma estratégia de implementação. O deslocamento de tão grande quantidade de execuções, no que provavelmente é a maior reforma judiciária do mundo na atualidade, não uma tarefa simples. Caso seja mal implementada e os agentes não estejam preparados para recepcionar a carga de trabalho, a transferência poderia causar um congestionamento ainda maior. 

A fim de verificar a congruência entre a carga de trabalho e a estrutura humana e tecnológica dos agentes de execução, realizamos um estudo para estimar os impactos da transferência das ações, fornecendo elementos empíricos para um plano estratégico de desjudicialização. O estudo tomou por base o PL 6.204/19 e, em linhas gerais, comparou a atual estrutura dos Tabelionatos de Protesto, considerando cobertura geográfica, quantidade e produtividade dos funcionários e estrutura tecnológica, com o volume de execuções (e, portanto, carga de trabalho) esperado com a recepção das execuções para cada localidade, em cenários diversos de transferência.. 

Metodologia e Resultados do estudo

A pesquisa utilizou dados do Módulo de Produtividade Mensal, do Justiça Aberta e do Justiça em Números, todos do CNJ, além de bases internas com as principais informações cadastrais dos tabelionatos de protesto, fornecidas pelo IEPTB (Instituto de Estudos de Protesto de Títulos do Brasil).

A capacidade dos agentes foi avaliada de acordo com diferentes cenários de desjudicialização, que variam conforme o percentual de novas ações de execução transferido do Poder Judiciário para os agentes de execução privados: 50%, 100%, 125%. Para cada cenário foi identificado o percentual de tabelionatos que se encontram preparados para receber as execuções daquela região. Os principais achados do estudo podem ser resumidos nos seguintes pontos:

  1. Em um cenário hipotético da desjudicialização obrigatória ou de opção (o PL hoje prevê a facultatividade), seriam desjudicializadas anualmente cerca de 4 milhões de execuções.
  2. No Brasil, há 3.741 tabelionatos de protestos, distribuídos com abrangência e capilaridade nacionais.
  3. O número excede em quase mil unidades a quantidade de varas cíveis com competência cumulativa para fins de execução de títulos judiciais e extrajudiciais (2.801 varas cíveis – Justiça em Números, 2021).
  4. No cenário mais conservador (com uma entrada de execuções nos tabelionatos em volume 125% maior que o atual), 75% das áreas do país abrangidas por ao menos um tabelionato de protesto já estão preparadas para receber a demanda da desjudicialização.
  5. No cenário menos conservador (com uma entrada de execuções nos tabelionatos em volume 50% menor que o atual), 97% das áreas do país abrangidas por ao menos um tabelionato de protesto já estão preparadas para receber a demanda da desjudicialização.
  6. Em todas as simulações realizadas, a maioria dos tabelionatos do país já está preparada para receber a demanda de execuções em todos os cenários.
  7. Pela concentração de execuções em comarcas de maior movimentação econômica, era esperado que um percentual pequeno de tabelionatos, localizados em centros econômicos maiores, estivessem expostos a uma maior pressão de demanda.
  8. Esses tabelionatos foram identificados pelo estudo, assim como foram estimados os investimentos adicionais em pessoas e equipamentos necessários para a recepção das execuções.
  9. Com base nessas informações, é possível conceber e  implementar uma Estratégia de Desjudicialização das Execuções para os Tabelionatos (EDET), que permita aos tabelionatos monitorar e prever a entrada de execuções, realizando os investimentos, treinamentos e contratações necessárias ao pleno sucesso do projeto.
  10. A desjudicialização de execuções cíveis no Brasil será o maior projeto de reforma judiciária do mundo, de grande impacto social e econômico. Pela sua escala e complexidade, sua implementação não pode ser feita de maneira intuitiva ou improviso. Ela deve necessariamente seguir uma estratégia tecnológica guiada por decisões tomadas com base em dados.

A tabela da figura abaixo resume os resultados para cada um dos diferentes cenários.

Apresenta resultados que indicam: já há tabelionatos de protestos capazes de cuidar das execuções civis
Impactos da desjudicialização para os Tabelionatos de Protesto e para o Judiciário.
Fonte: Terranova, 2021.

 

Os resultados detalhados da pesquisa estão disponíveis para o público pela internet nos sites da Terranova e do IEPTB

Autores: Bruno Daleffi (Terranova Consultoria) e Marcelo Guedes Nunes (Guedes Nunes, sociedade de advogados).

Referências

DALEFFI, Bruno, TRECENTI Julio e NUNES, Marcelo, Impacto da COVID-19 no judiciário de São Paulo, 1 de abril de 2020.  Disponível em: <https://www.linkedin.com/pulse/impacto-da-covid-19-judici%C3%A1rio-de-s%C3%A3o-paulo-bruno-daleffi/>. Último acesso em: 25/04/2022

CNJ, Justiça em Números 2021, 2021. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/relatorio-justica-em-numeros2021-12.pdf>. Último acesso em: 25/04/2022

TERRANOVA, Relatório Técnico – Desjudicialização da Execução Civil – PL 6.204/19, 22 de março de 2022. Relatório Técnico – Terranova

TERRANOVA, PARECER ACERCA DA DESJUDICIALIZAÇÃO CIVIL – PL 6.204/19, 22 de março de 2022. Parecer Jurimetrico – Terranova

One Reply to “Os Impactos da Desjudicialização da Execução Civil”

  1. Impactus

    Reply

    Quero ver o impacto dos cartórios tendo que usar o PJe. Quem vai desenvolver esta solução? Em quantas décadas haverá a integração?

    O problema da execução é falta de dinheiro, não de tempo.

    Os juízes já decidem apenas os casos complexos, valendo-se dos servidores para os atos ordinários. Tem que se criar algum incentivo para que o judiciário colabore com o credor, pois a postura atual é de jogar a bola pra frente, transferindo todo o ônus para o particular.

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